TRADIÇÕES E CENÁRIOS DE TRAGÉDIAS: UMA ÁGUA ESCURA NO CAMINHO DA MÍDIA CLÁSSICA E
MÍDIA POPULAR*
Dolores Puga Alves de Sousa** Federal University of Uberlândia – UFU
[e-mail protegido]
RESUMO: Este artigo analisa o percurso da tragédia, desde a antiguidade clássica até a década de 1970, e mantém por meio da pesquisa o diálogo entre passado e presente. Nesse sentido, buscamos compreender como a tradição trágica chega à nossa sociedade e se transforma conforme os períodos históricos, sabendo que a única coisa que pode ser considerada certa é a continuidade da palavra "tragédia" como afirma Raymond Williams . . Dessa forma, é possível – em um duplo movimento do tempo histórico – compreender a apropriação pelo teatro brasileiro da tragédia grega Medéia de Eurípides (431 aC), retomada por meio da adaptação de Medéia de Oduvaldo Vianna Filho (em 1972). ) e sobretudo a releitura de Gota D'água (em 1975) de Chico Buarque e Paulo Pontes, como forma de expressão da resistência democrática durante a ditadura militar no Brasil. RESUMO: Este artigo analisa a maldição da tragédia na antiguidade clássica até a década de 1970, mantendo, com pesquisa, o diálogo entre passado e presente. Dessa forma, ele tenta entender a forma como a tradição da tragédia chega à nossa sociedade e se transforma de acordo com os períodos históricos, percebendo que o que pode ser considerado correto é uma continuação da palavra "tragédia", segundo seu afirmativo Raymond Williams. Assim ele compreende - em duplos movimentos de tempos históricos - a apropriação pelo teatro brasileiro da tragédia grega Medeia de Eurípides (431 aC), retomada com a adaptação de Medéia de Oduvaldo Vianna Filho (em 1972) e, em especial, releitura de Gota D'água (em 1975) de Chico Buarque e Paulo Pontes, como forma de expressão da resistência democrática durante a ditadura militar no Brasil. PALAVRAS-CHAVE: tragédia – Oduvaldo Vianna Filho – Chico Buarque – Medéia – Gota D'água PALAVRAS-CHAVE: tragédia – Oduvaldo Vianna Filho – Chico Buarque – Medeia – Gota D'água
Vezes sem conta a mulher tem medo, tímida para lutar e fraca nas armas. Mas se ele vê que os direitos do casamento são violados, então é feito
* Este artigo é resultado de pesquisa de Iniciação Científica (programa CNPq/PIBIC), da qual
O projeto "Medéias e Joanas: a tragédia grega revivida no Brasil em tempos de resistência democrática" está vinculado ao projeto intitulado "O Brasil da resistência democrática: o espaço cênico, intelectual e político de Fernando Peixoto. (1970-1981)", sob o orientação do Prof. dr. Rosângela Patriota Ramos.
** Bacharel em História pela Universidade Federal de Uberlândia, Bolsista de Iniciação Científica (CNPq) e membro do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e Cultura (NEHAC).
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ISSN: 1807-6971 Disponível em: www.revistafenix.pro.br
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A mais sanguinária de todas as criaturas! Eurípides [Medeia]
Compreender as expressões artísticas não apenas como diferentes formas
representação que cada criador retira de uma dada realidade histórica, mas também
uma forma sutil de observar os debates, contradições e questões que surgem
desses escritores pela abstração que fazem, nota-se um ponto central de interseção entre a maioria
experiências variadas e suas "estruturas emocionais" definidas como Raymond
Williams era percebido como a "voz" daquilo que cria1, entre tantos outros que
caracteriza o mesmo período.
Com base nesses pensamentos, o homem é visto em tudo
a capacidade construtiva do sujeito histórico, que produz de acordo com o que considera ser
real, enquanto sua produção se impõe a este bem real, carregando
as mudanças que vão determinar o processo de diferenciação dos momentos da história.
Assim refletimos sobre o teatro, que neste trabalho se conjuga na discussão de
a tragédia e suas convenções estruturais, seus significados e temas no tempo. todo
como com suas peculiaridades e novos significados.
Assim, o projeto partiu da reflexão historiográfica de três textos
dramas que serviram de fonte de documentação para a pesquisa: tragédia grega
Medea de Eurípides, cujo período é colocado em 431 aC. o texto teledramático
Medéia de Oduvaldo Vianna Filho, 1972 – adaptação da peça grega sobre
realidade brasileira? assim como a reformulação de Chico Buarque e Paulo Pontes, Gota
D'água, 1975, inspirado no já citado teledrama de Vianinha.
O texto dramático e a tragédia grega
Primeiro, é preciso pensar o drama como um todo
incluir na análise não apenas a realização da performance, mas também o trabalho
escrito. Nesse sentido, tornou-se válido refletir sobre o texto teatral, em relação
muitas vezes como a forma mais fiel de abordar a perspectiva do autor sobre a obra.
1 Om emnet, se: WILLIAMS, Raymond. Moderne tragedie. Sao Paulo: Cosac & Naify,
2002.
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A partir deste estudo literário é possível situar as convenções seguidas ou as escolhas
tomadas. De acordo com Raymond Williams:
Pois uma convenção não é apenas um método: uma escolha técnica arbitrária e voluntária. Encarna em si as ênfases, omissões, avaliações, interesses, indiferenças que constituem uma forma de ver a vida e o drama como parte da vida.2
O estudo do texto dramático tornou-se válido quando os pesquisadores
percebeu que elementos característicos de sua estrutura poderiam demonstrar, mesmo
que de forma imaginativa a vontade do autor para a performance. Como "[...]
vestígios de encenações anteriores e mapas de todas as encenações futuras [...]»3, o
rubrica – um dos elementos do texto – e o cuidado com sua análise serviu
maior aprofundamento na pesquisa de peças como a clássica Medéia de
Eurípides – objeto de estudo da pesquisa – cujo tempo é longo demais para
um resumo dos acontecimentos ocorridos. Variações em seus significados e significados
as rubricas dependem do contexto a que cada historiador se refere. essas diferenças
nos significados e significados atribuídos à rubrica – também chamados didáclias – eles causam
transformações gerais ao longo do texto, colocando-o de forma significativa, não
única representação da peça – principalmente na ausência daquela que já
dito – mas igualmente pela representação das mais variadas práticas que compõem
estações diferentes.
Ao voltarmos nossa atenção para a Grécia, quando o teatro foi colocado em um
função ritual primordial ao deus Dionísio (deus do vinho e das festas), da
A realização na performance era necessária, até pela falta de acesso aos textos
efeitos dramáticos sobre a maioria da sociedade, especialmente a tragédia que começou a acontecer
é considerada uma das melhores expressões artísticas das questões sociais.
Após frequentes adaptações, textos trágicos e outros tipos de poesia,
tornaram suas leituras mais fáceis e acessíveis às pessoas envolvidas em
produção de palco. Isso muda a linguagem e a estrutura da escrita
eles mostram integrações de natureza social e histórica, na medida em que estão conectados
2 WILLIAMS, Raymond. Drama e previsão. Nova York: Culture Discovery, 1968, p. 180.
"Uma convenção não é apenas um método: uma escolha técnica voluntária e arbitrária. Inclui, dentro dela, ênfases, omissões, valores, interesses, indiferenças, que constituem uma forma de ver a vida e o drama como parte da vida.” (tradução nossa).
3 RAMOS, Luiz Fernando. O nascimento de Godot e outras cenas imaginárias: a rubrica como poética da cena. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 16.
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nos valores gregos e na capacidade de criar significado. Se nos referirmos a Roger
Chartier, observaremos que:
[...] o sentido dos textos fixados em suas palavras pode ser mudado radicalmente pelas diferentes apresentações tipográficas que são produzidas uma após a outra, alterando a forma e a disposição da página, a ilustração e o recorte [... ].4
A partir dessa perspectiva de ressignificações, a explicação da rubrica
A performance foi através do texto para o antigo ponto "chave" entre a obra
escrita e palco, quando os gregos pela primeira vez deram crédito pela realização sistemática
do show.
Com o tempo, no meio das apresentações dos corais, os diálogos foram
que é incorporado, bem como a estruturação dos atores. O coro continuou com eles
significado na tragédia por sua interdependência com aqueles que dialogam, mas
agora tem uma função específica de contar a história e julgar os personagens
como membros representativos da sociedade. Aristóteles em sua Poética,
mostraram interesse nesses novos valores atribuídos. levando em conta
herói trágico como o centro da humanidade cujos problemas espelham o universo como
como um todo, também passa a considerar cada vez mais a tragédia como um ponto de partida
Discussão dos conflitos humanos e sua relação com os conflitos dos deuses.
atitudes entrelaçadas com suas crenças e expressas no drama.
Na busca pela abstração do drama em toda a sua completude e perfeição,
Aristóteles luta contra a efemeridade da peça e exalta a obra escrita,
portanto, demonstra a "estrutura emocional". É do jeito que é
forma colocada em “[...] uma visão ainda rara na cultura de seu tempo, que
ela se volta contra uma tendência dominante.”5 Se a tragédia é baseada na relação universal
de homens e deuses, o drama deve passar de geração em geração o mais fielmente possível.
e ao mesmo tempo como "poesia pura", segundo Aristóteles. Esta prisão só
intocada pela interpretação do dramaturgo.
Nesse contexto, onde as palavras são refinadas pelo significado que
reações da plateia – que se colocam em melhor posição, não como plateia, mas como
leitura para Aristóteles – a rubrica perde seu destaque, permanece
4 HARTIER, Roger. Formas e Sentidos – Cultura Escrita: Entre a Discriminação e a Apropriação. Campinas:
Mercado de Letras, 2003, p.85.5 RAMOS, Luis Fernando. O nascimento de Godot e outras fases do imaginário: a rubrica como poética
fra scenen. São Paulo: Hucitec, 1999, s. 20.
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está implícito nos diálogos e, quando explícito, é reduzido em grau
indicação de entrada e saída de caracteres. Então uma teoria trágica foi fundada -
como todas as teorias do filósofo, onde se pensa no homem como ele pensa nas leis
física – para se tornar um guia atemporal para quem quer produzir
tragédias cuja função era atingir o público adequadamente e trazer lições eternas
para o homem.
Muitos dramaturgos começaram assim a buscar a poética aristotélica
uma identidade trágica, sem considerar as implicações de seu período histórico
por esta analogia e por seus próprios pontos de vista. Eurípides confiava em muitos
as reflexões de Aristóteles; os pensamentos que se tornaram verdadeiras "formas"
para a maioria dos textos clássicos, especialmente quando se trata do papel da rubrica.
Logo na primeira cena de Medeia há apenas indícios de uma entrada
por Ama, seguido por um extenso monólogo do personagem. Além da função
Um adereço para Medeia, a Ama, nessa situação particular da peça, também tem uma função
contar a história – como o refrão que costuma contar o que acontece durante a trama
– que, em muitas palavras, mostra como e em que ponto a tragédia das mulheres
traída por Jason - seu marido, a quem ela dedicou toda a sua vida - é tecida no mito
dos Argonautas. A partir do monólogo, de forma imaginativa, já é possível construir tudo
as intenções presentes e futuras do protagonista, incluindo más intenções em relação a ela
filhos como vingança pela traição do marido. A visão da cena é então
implícito no discurso de Amma.
Amor - Ah! Se o céu nunca permitiu que o Argo cruzasse o mar azul entre as Sympligades, fugindo para a Cólquida, [...] que por ordem do rei Pélias eles foram buscar o raro velo de ouro! Medéia, minha amante, não faria essa viagem para Iolcus com o coração ardendo de amor por Jasão [...] que trai seus filhos, e sua amante [...] se casaria com a filha do rei Creonte [...] Medéia, a infeliz, ferido pela raiva, te invoca [...]. Ela faz com que os deuses testemunhem a recompensa que recebe de seu marido [...] Os filhos a apavoram, e ela não sente mais satisfação em vê-los. Tenho até medo que a infeliz consiga alguma solução inusitada [...].
6 EURÍPEDES. Medeia; Hipólito? Os troianos. 6. Rio de Janeiro ed.: J. Zahar, 2003, p. 19.
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Assim, entende-se que a Poética foi escrita principalmente para
eles servem como uma teoria básica a seguir - e, nesse sentido, conhecidos como "tragic
autêntico', nas palavras de Albin Lesky.7 Tais pensamentos nos mostram
a existência de um ponto onde todos se identificam ou procuram se identificar quando estão
ele criou uma noção muito fundamentada de tragédia, baseada em dramas gregos
que foi reportado tanto aos quadros quanto às discussões sobre a sociedade.
Essa referência pode ser notada no caso de Vianinha, Chico Buarque e Paulo Pontes,
quando escolheram a Medeia clássica como "grande texto dramático",
tornando-o o foco de sua adaptação e posterior reformulação com Gotha
Da água. No entanto, o problema se torna mais aparente quando a trágica prisão é feita.
cria uma "força hipnótica" - para usar uma expressão de Carlos Vesentini - até
qualquer outro tipo de significado.
A capacidade da memória de bloqueá-lo [bloquear o movimento histórico] parece derivar em grande parte do poder adquirido ao localizá-la em um evento – memória e evento estão unidos, o primeiro sobrevive e determina nesse movimento onde as interrogações serão realizadas, no da mesma forma que exclui vértices onde sua coerência poderia ser questionada.8
Portanto, é preciso perceber que os dramaturgos constroem representações dela
tradição trágica e deve ser constantemente apropriada e reapropriada para
que suas normas fazem sentido em particularidades históricas. Chartier, portanto, afirma:
A apropriação [...] visa uma história social de usos e interpretações, referindo-se às suas disposições fundamentais e inscritas nas práticas específicas que os estruturam. Estar ciente das condições e processos que governam muito especificamente as operações de construção de significado é, portanto, reconhecer [...] que nem as ideias nem as inteligências são puras e, ao contrário dos pensamentos universais, que as categorias dadas como invariáveis [. ..] ] deve ser considerada na descontinuidade das trajetórias históricas.
Vianinha, Chico Buarque e Paulo Pontes: créditos históricos
Por essas razões, qualquer produção trágica estará imbuída de valores
de cada período, inclusive os baseados em peça já composta em
7 LESKY, Albin. tragédia grega. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1976. 8 VESENTINI, Carlos Alberto. A teia de eventos. São Paulo: Hucitec, 1997, p.19.9 CHARTIER, Roger. Formas e Sentidos – Cultura Escrita: Entre a Discriminação e a Apropriação. Campinas:
Mercado de Letras, 2003, σελ. 152-153.
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antiguidade em uma adaptação ou reelaboração moderna – como Medeia
Vianinha e Gota D'água, que redefiniriam os conceitos na referida obra
clássico da realidade brasileira dos anos 1970.
Em Gota D'água, a ação se situa na história de uma população carente de uma
vila carioca - "Vila do Meio-dia" - onde mora a protagonista Joana,
apaixonado por Jasão, um sambista que fica famoso e a trai com mais uma mulher
jovem e rica (apenas filha do dono deste complexo de apartamentos). sua ambição
Jason representa não apenas a traição de sua esposa, mas também a traição do mundo inteiro.
um povo oprimido lutando diariamente por sua sobrevivência. como Joanna
ela havia se sacrificado pela carreira e desenvolvimento pessoal de seu marido, essa determinação
vingança tentando matar a noiva e o sogro de Jason. Então você não entende
de propósito, a personagem principal mata os filhos que teve com ele e se mata logo em seguida.
seguido como um protesto.
Embora Chico Buarque prefira a presença do coro – seu elemento
A tragédia grega e a tradição poética de Aristóteles - o público é diferente. Iniciar
interpretações, ênfases e omissões irão variar. Em Gota D'água, o tradicional coro
é redefinido nas figuras dos vizinhos de Joana – Joana, a protagonista da peça.
Localização da estrutura trágica e forma de linguagem, os dois textos dramáticos
Os brasileiros usam rubricas claras, até porque, ao mesmo tempo, com
avanços da tecnologia e valorização da aparência, a visualização das cenas deve
aparecem focados em elementos da performance, na construção das imagens, na ambientação,
figurinos, movimentos dos atores. Tanto no arranjo do Vianinha quanto novamente
editado por Chico Buarque e Paulo Pontes, desde o início há uma
preocupação em identificar essas imagens, dispor de acessórios gráficos,
personagens, design de som. Com uma riqueza de detalhes ainda maior
rubrica na tragédia Medea, adaptada em 1972, que como teledrama define
no texto especificamente cada ângulo de câmera, close-up e corte. De acordo com
Diógenes Maciel:
O prólogo do texto de Vianinha difere, pela própria metáfora, daquele que aparece na tragédia de Eurípides [...]. Ao invés das falas da enfermeira e do presidente caracterizando Medeia e sua raiva comparada a uma leoa [...] ou a narrativa do propósito de Jasão, temos a ação na apresentação. Com exceção dos recursos de prólogo e refrão, natureza narrativa e em favor da explicação dos acontecimentos que se seguirão no novo texto, essas explicações devem ser imediatamente apresentadas ao leitor/espectador para não prejudicar
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desenvolvimento/compreensão do novo terreno. A enfermeira que nos colocou em contato com o que acontecia dentro de casa e descreveu o estado mental de sua patroa, que gritava sua dor, agora, tendo se tornado Dolores [vizinha de Medéia], também é uma espectadora silenciosa do desespero da protagonista. que acontece em palco aberto, em frente ao público. 10
Entre a razão e a paixão: as reinterpretações do trágico
Na reconstrução dos sentidos, o próprio conceito trágico deve ser modificado,
assim como a abordagem dos assuntos. É preciso perceber que os problemas sociais,
a ansiedade e a dúvida mudam, assim também Eurípides, se
dramaturgia está na antiguidade, ela também possuía uma representação da teoria
trágico e se apropriou disso em suas produções. A tragédia de Medeia prendeu muitos
percepções estabelecidas da lenda dos Argonautas. A relação básica entre o homem e
os deuses são imortalizados na obra. O simbolismo da hierarquia dos imortais, em sua eterna
obstáculos convincentes que os mortais devem superar - sempre de propósito
honra para alcançar a honra - preservada na tragédia. Isso pode ser visto em
naquele momento Jason - porque ele não cumpriu sua promessa de lealdade a Medea,
em frente ao templo da deusa Hekate (da magia) – sofre que seus filhos tenham
assassinados pela mãe em um ato de vingança.
É o sentido desses obstáculos impostos que se preserva quando no mito
As rochas Simplégades se chocam na tentativa de impedir sua passagem
O navio dos Argonautas a caminho da Cólquida. Outro exemplo pode ser encontrado quando
O herói Jasão, que consegue chegar ao local em busca do velocino de ouro, deve –
pelos padrões do rei Aécio, pai de Medeia e dono daquela preciosidade - domar
touros cuspindo fogo de suas narinas para arar o solo pedregoso com eles. EM
então eles enfrentam guerreiros e o dragão que guarda a pele de carneiro dourada
sem nunca dormir. São os conceitos em relação a essa cobiçada pele que
espalhados na obra, no momento em que Jasão a conquista - com a ajuda de Medeia -,
atraídos por promessas de que seus encantos eram capazes de conferir riqueza e felicidade
no reino que o possuiu. Mas, da mesma forma, o herói percebe que esse encanto
torna-se uma maldição e um pesadelo quando conquista o velo, não por causa dele
10 MACIEL, Diógenes André Vieira. Dos navios dos argivos ao subúrbio de Karioka – rotas de um mito grego
fra Medéia (1972) til Gota D'água (1975). Fênix – Journal of History and Cultural Studies, Uberlândia, v. 1, nr. 1, okt./nov./dec. 2004. Tilgængelig på:
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pela honra, como se espera dos heróis, mas pela morte injusta de Apsirtus,
irmão de Medeia.11 Por fim, o sentido do castigo dos deuses, demonstrando sua poderosa
a imposição dos mortais é imortalizada na tragédia de Eurípides.
Mas a segunda metade do século 5 aC. inaugurou uma nova era para
gregos, quando Eurípides tentou se integrar ao novo zeitgeist e ao homem
começou a ser a medida de todas as coisas. A razão, isto é, a razão, se faz
valorizado em detrimento da crença de que o caminho "iluminado" exportado por
os deuses não podiam ser removidos e refletidos pelo raciocínio humano, mesmo antes
atravessar. Desta forma, o homem começa a ter consciência de suas ações. essas ações
que reflete os constantes conflitos entre seguir a exaltação do espírito ou consumir-se na
o fogo das paixões. O fator que impediria ou não a "escolha errada" seria justamente isso
lógica.
Estas novas disposições já não se encaixam em algumas teorias
Aristóteles sobre a tragédia. No capítulo XIII de sua Poética, Aristóteles explica
que o fundamento trágico é construído apenas pela inconsciência humana das ações. Sobre
uma "falha" em seu próprio ser que o impede de ver a verdade da evolução
do espírito que só os deuses poderiam alcançar.
Embora haja uma enorme influência da mitologia na realização das tragédias
As lendas gregas também são reconstituídas em nome de novos valores. sua visão
Eurípides para o sucesso da racionalidade humana já mostra uma modificação dela
mitos indígenas; mitos que nem Aristóteles confiava para definir
sua trágica teoria. O poder retido nas tragédias euripidianas das regras de conduta
da razão subjugando as paixões é uma forma de estabelecer um senso de cultura
- importância da constituição do povo grego - contra a "barbárie" ao relacionar as ações
apaixonado pelo que é considerado "primitivo" e estabelecendo ao mesmo tempo,
o patriarcado. De acordo com Gerard Lebrun,
se a palavra paixão está firmemente ligada à opressão, é porque já representamos a razão como uma lei, expressa por um comando dirigido a todos, ignorantes ou instruídos - por um comando tão poderoso que todos os homens [. ..] capaz de entender pelo mesmo motivo. No fundo, é essa interpretação estatutária do logos que nos obriga a pensar em toda paixão como um
11 Para o mito dos Argonautas ver: STEPHANIDIS, Menelau. Jasão e os Argonautas. 2ª ed.
Sao Paulo: Ulysses, 2000.
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fator de interrupção e deslize e considerá-lo, rápido como um raio, suspeito e perigoso.12
Nas crenças mais antigas, Medeia era associada à grande deusa, com quem
incluía as deusas do Olimpo: Hera, Afrodite, Atena e até Hekate - a já mencionada
representante da magia. No período matriarcal, essas deusas, assim como seus dons de
desejo, renovação, conselho e cura, combinados na figura deste único
divindade maior cuja função era proteger e guiar os mortais. Com sua existência
sacerdotisas para adorar a grande deusa - como a própria Medeia - foi feita uma tentativa de manter um
ciclo eterno de vida, morte e renascimento através de seus encantamentos e sacrifícios
homens. 13
Desde a transição para o patriarcado, as deusas gradualmente perderam seus
poder simbólico, isolados uns dos outros e novos deuses masculinos. QUE
Sacrifício e morte são considerados desumanos na mesma medida em que
O homem passa a dirigir seu próprio destino com a ajuda de sua fala, de sua lógica. Para
resgatar o herói Jason da besta que guarda a pele de carneiro dourada, heroína não
usou suas habilidades de proteção e cura de forma mais impessoal também
deusa que deu as bênçãos, mas o fez pelo sentimento humano de amor - fonte
A magia de Vênus. Assim, ele foi reduzido a um mortal possuidor de dons
magos.
O clímax trágico da peça grega, onde Medeia por ciúmes
– outra emoção humana – causa a morte da noiva de Jasão, futuro sogro e do próprio
seus próprios filhos, antes de mais nada, passam a simbolizar a busca da heroína por seu retorno
condição física? estado de imortalidade e divindade do qual ela emerge vitoriosa.14 Este
Esse mesmo lugar trágico também representa o poder e a influência que eles ainda têm
a hierarquia estruturada e a vontade dos deuses na visão de Eurípides, isso também
defende, cada vez mais, a libertação do homem de seus "grilhões".
imortal.
12 LEBRUN, Gérard. O conceito de paixão. In: CARDOSO, Sérgio. e outros Os sentidos da paixão. Eles são
Paulo: FUNARTE/ Companhia das Letras, 1987, p.24.13 Sobre a figura de Medeia nas lendas gregas, ver: RINNE, Olga. Medeia: o direito à raiva e
ciúmes. 9ª ed. São Paulo: Cultrix, 1999. 14 Sobre a ativação da ação trágica de Medeia, ver: ROCHA, Elizabete Sanches. A queda
que virou mar: o jogo de palavras em Gota D'água. 224 f. Tese (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 1998.
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Afirmando que Eurípides está entre os mais trágicos, Aristóteles conclui
pela busca de significados que coloquem suas peças na teoria poética que formulou. Definitivamente,
no mito, as intenções originais de Jason eram limpar seu espírito quando ele tentava
conquistar o velo de ouro. Este símbolo dourado pode significar sua aproximação
pureza mítica. No entanto, é possível acreditar que Medeia é purificada e volta para ela
função mítica no momento em que – no ato fatal da tragédia – evoca o ódio e
leva a uma catarse que produz horror e pena na platéia?
Segundo as explicações de Aristóteles, só lamentamos uma coisa
cujo sofrimento não valeu a pena, ou de uma atitude tomada sem a devida consciência
ser sobre certo e errado. É precisamente aqui que reside o "fracasso".
Humano. No entanto, a Medeia de Eurípides, possuindo a própria consciência, é incapaz de
para infligir dor matando seus filhos por desejo de vingança.
The Modern Tragedy: Medea (1972) og Gota D'água (1975)
Apesar da diversidade de significados, a sincronicidade também se tornou
influenciado pela trágica tradição de abordar sua teoria mesmo sem refletir sobre o fato
que suas abordagens também são créditos. A modernidade foi baseada
a base de que a tragédia está imbuída de uma "natureza das coisas". uma ordem
que acontece na vida dos homens. Na sociedade grega esta classe representava
precisamente o controle dos imortais sobre os mortais. Os deuses foram capazes de criar e
destruir heróis para que todos sigam um caminho definido e nada fique em seu caminho
desenvolvimento do espírito humano. Por esta razão, os heróis agiram em nome de todo o mundo.
o universo, considerado "superior", tornando-o o destino de toda a humanidade
no destino.
No entanto, mesmo que posteriormente houvesse uma nova listagem do mesmo
poder humano sobre o destino, indicando seu domínio sobre reinos e governos - já
demonstra a representação de "superioridade" devido à sua nobre posição social -
Após a Idade Média, o Renascimento, entre outros períodos, a modernidade - depois dela
ascensão da burguesia – provaria que “[...] o indivíduo não era nem o Estado nem
um elemento do estado, mas uma entidade em si mesmo.”15 Nesta superestimação do
pessoa sobre ele, começou o sofrimento de um homem sem lugar para estar 15 WILLIAMS, Raymond. Tragédia e Idéias Modernas. Para: ______. Tragédia moderna. São Paulo:
Cosac & Naify, 2002, s. 74.
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considerado de forma mais séria e direta, mas o senso de "ordem" na vida acabou sendo
perder porque o sofrimento trágico, portanto, não tem mais
representação pública e geral.
A valorização crescente de um pensamento cada vez mais racional de ser
sobre o homem e o mundo – um pensamento que também se apresenta como individualista –
sofrimento foi racionalizado de tal forma que não o vemos mais como trágico, mas como um
"acidente" na "natureza da coisa", de acordo com sua própria estimativa dele
Raimundo Williams.
Esse tipo de pensamento racional banalizou qualquer conceito de tragédia
moderno que poderia existir. No entanto, não se deve esquecer que todos os eventos
eles se relacionam com as ações humanas e por isso devem ser observados
intervenção. Se agora a tragédia é especificada e focada em sua vida
uma única pessoa, é necessário através da equipe para ver o social,
eles não são controlados por deuses, mas por instituições ou classes dominantes.
Assim se apresenta o sentido nas tragédias de Vianinha e Chico Buarque e
Paulo Pontes. Para este último, há “[...] em cada época uma transcendência do homem.
[...] Os gregos viam essa transcendência nos deuses, os românticos no destino [...]. Iniciar
No caso de 'Gota D'água', é o equipamento social que supera os personagens
fisgado".16 Este é o significado trágico, no momento em que vemos a opressão
de Creonte – o pai rico da futura noiva de Jasão – para a 'heroína'. agora carioca e de
origens humildes – respectivamente Medéia no teledrama e Joana em Gota D'água.
A ação apaixonada dos protagonistas, que buscam não apenas a morte de seus filhos, mas
O suicídio também demonstra a busca desesperada por justiça. No entanto, esta justiça
eles não são dos homens, afinal, Creonte os rejeitou, e eles perderam seu amante e parte
Direto. São personagens que têm fé e esperança de que serão vingados.
espiritualmente como mulheres e como cidadãs que sofrem com a pobreza.
Medéia e Joana representam um povo que luta todos os dias
morte e matando seus filhos, uma chance de alcançar o céu e uma vida
16 pontes, Paulo. Subúrbios e Poesia. Movimento, São Paulo, nº 31, 2 de fevereiro. 1976. In: PIXOTO,
Fernanda. Teatro em pedaços. 2ª edição São Paulo: Hucitec, 1989, p. 282.
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vida eterna digna, melhor do que a que você viveu na terra, longe da escassez e da paixão
força avassaladora que os dominou e os destruiu.17
Joana – [...] meus filhos, mamãe queria contar uma coisa pra vocês. É hora de descansar. Fica perto de mim, nós três juntos, vamos para um lugar que é assim: é uma quadra bem mole e mansa, tem um jogo de bola e uma padaria. Tem circo, música, muitos pássaros e aniversários todos os dias Ninguém briga, ninguém espera, ninguém empurra ninguém, meus amores Nunca chove, é sempre primavera Deitamos em um canteiro de flores, mas não dormimos, nós continue olhando para as estrelas. Ninguém está sozinho. Lá não dói, nunca ninguém vai. As janelas estão sempre cheias de gente a cumprimentar Não há medo, tudo é tarde E lá ficamos a apanhar sol Há sempre um leve cheiro a éter no ar, a infância é imortalizada em formol (Dá um bolo [envenenado] e põe guaraná vou deixar este presente de casamento para Creonte, sua filha Jasão e sua companhia transmito a você nossa ansiedade porque meu pai, percebi que o sofrimento de conviver com a tragédia todos os dias é pior do que a morte por envenenamento.
Em ambos os dramas brasileiros, a classe dominante foi representada em sua figura
Creonte, derrota as tramas. Ele e a noiva de Jason escapam ilesos. É do jeito que é
que a tragédia pessoal se estabelece juntamente com a social, posicionando-se como uma
característica da tragédia moderna. Neste caso, é uma paixão ideológica
na luta pela esperança e pela resistência, que também é política. Acontece
assim é possível demonstrar a desigualdade social e prejudicar diretamente o poder da ditadura
militar – contexto histórico, no qual obras de Vianinha, Chico Buarque e Paulo Pontes
é importado. O ato passional de Medéia em 1972 e Gota D'água não virá
17 Sobre a avaliação da atuação de Joana em Gota D'água, ver: ROCHA, Elizabete Sanches. A queda
que virou mar: o jogo de palavras em Gota D'água. 224 f. Tese (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 1998.
18 BUARQUE, Chico. & BRIDGES, Paulo. Pingo D'água. 29ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 173.
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eles simbolizam a busca da heroína pela reestruturação por meio de seu sacrifício como
na tragédia grega, mas sim sua busca de autopiedade. Para Williams,
[...] a sensação de perda costuma ser mais forte que a sensação de renovação. O mártir é oficialmente retratado como um herói, embora mais frequentemente lamentado como uma vítima. [...] Os heróis geralmente nos comovem mais quando são de fato vítimas e quando são percebidos como tal. Nosso vínculo afetivo é, na maioria das vezes, estabelecido com a pessoa que morre, e não com o ato em que ela morre. É precisamente neste ponto que se inicia um novo ritmo de tragédia, onde a cerimônia sacrificial não é afogada em sangue, mas em piedade.[...]19
Ainda entendo a grande diferença entre Medeia de sua tragédia
Eurípides - considerado pelos antigos como uma heroína por sua "superioridade" - e
Medéia e Joana das tragédias brasileiras - consideradas heroínas no mesmo momento
as vítimas do tempo – os personagens principais das três obras são semelhantes em um aspecto crucial:
elas são mulheres. À medida que se envolveram na paixão, tiveram a ideia de si mesmos
tornou-se a ideia do relacionamento. Todo o seu poder foi canalizado em
as conquistas de seus entes queridos na esperança de receber em troca carinho, atenção e,
Principalmente a fé. "Eu", a individualidade, tornou-se "eu e ele".
Nesse sentido, há um sentido dramático quando os personagens se perdem
abaixo da trama. Mas o que nos resta é que a Medeia de Eurípides consegue
reencontra-se como deusa em seu ato final de assassinato, mas Medeia do Rio de Janeiro e
Não Joana de Gotta D'Water. No ato do suicídio, na estratégia de Vianinho, Chico
Buarque e Paulo Pontes, uma reflexão sobre a realidade brasileira da época
crítica – a repressão da ditadura militar.
Ditadura militar e década de 1970: entre o autoritarismo e o
pergunta "nacionalista"
Quanto ao período moderno do país, foi a década de 1970
considerou a fase chamada de "resistência democrática" porque houve uma mudança
uma visão importante sobre como lidar com a autocontenção militar. Nenhum
conflito político imediato se seguiu, pois os artistas não podiam circular
suas obras, devido à perseguição, censura da mídia, exílio e
prisões. Um momento conhecido como "o milagre financeiro" começa quando
19 WILLIAMS, Raymond. Trágica resignação e vítimas Eliot e Pasternak. Para: ______. Tragédia
Moderne. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, s. 207.
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oportunidade para certos setores sociais se desenvolverem economicamente, especialmente o
classe média. Grandes obras públicas – como pontes, viadutos, siderúrgicas, etc. –,
além da "febre do consumo" que chegou ao Brasil com seu desenvolvimento
indústrias – principalmente a automobilística – caracterizaram o período e deram forte
a impressão de progredir pela possibilidade de compras facilitadas,
a promoção de novos empregos e a busca da felicidade por meio da posse de bens, como
disse o jornalista Celso Japiassu. Além disso, sua mídia
a massa também se desenvolve, torna-se meio de informação, ideias e
formação de opinião com o advento da propaganda, assim utilizada para defender a proposta
de um "país em desenvolvimento", fator que se tornou um obstáculo para eles
que se opuseram à autoridade institucionalizada e demonstraram suas falhas.
Ifølge Maria Hermínia de Almeida og Luiz Weis:
Em regimes violentos, as fronteiras entre o público e o privado são mais tênues e instáveis do que nas democracias. Pois enquanto o autoritarismo busca limitar a participação política autônoma e promover a desmobilização, a oposição ao regime inevitavelmente atrai a política para a esfera privada. Primeiro, porque uma parte importante da atividade política é uma trama secreta a ser escondida dos órgãos repressivos. Em segundo lugar, porque a atividade política, quando reprimida, tem consequências diretas na vida cotidiana. Isso pode significar a perda do emprego. Mudar de casa. separação da família, amigos e parceiros, bem como prisão, exílio, morte.20
A realidade descrita é apresentada como um dos cenários com os quais as aulas
classes média e baixa no Brasil conviveram sob a ditadura militar, cenário que
reflete a luta da sociedade por uma governança justa e sobretudo no nome
liberdade. Mas mais do que uma luta por direitos, que são fundamentais
moral e politicamente, a maioria da população, o estrato mais pobre, luta sobretudo pela
sobrevivência - um fator dominante na tentativa do estado de manter seu poder
através do controle das pessoas. ainda usa, de forma mais significativa, de
mecanismo supressivo.
Esses elementos podem ser observados no texto teledramático de 1972 e i
texto da peça teatral de 1975. Como já mencionado, a trágica ação partiu de Medéia/Joana
20 ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de. & WEIS, Luiz. Carro-nul og pau-de-arara: hans daglige liv
resistência da classe média ao regime militar. In: NOVAES, Fernando A. (Org.). & SCHWARCZ, Lília Moritz. (Org.). A história da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, v. 4, p. 327.
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simbolizam um esforço final na busca de um ato de justiça social. Além disso
própria estrutura linguística em Gota D'água, com o uso pretendido da palavra,
textos e falas populares, também nos remete à preocupação dos autores com
social e a busca de um conceito bem definido de "povo brasileiro". preocupar
aquela estabelecida sob a influência dos ideais populares nacionais no início
sublinhado por Vianinha – por isso optou por adaptar um clássico
a realidade da pobreza brasileira – em sua participação efetiva no Teatro de Arena e
no Centro Popular de Cultura quando fez amizade com Paulo Pontes. no projeto
Gota D'água, segundo ele: "o verso [...] é capaz de elaborar o caráter social e
dar uma dignidade, uma força teatral, que substitua o diálogo em prosa, naturalista
[...], a tradição da rima é das camadas populares".
Como representações da realidade vivida na década de 1970, entre
opressões servem as duas obras como ponto de partida para lidar com
as seguintes questões: como se dá a construção e manutenção do discurso dominante;
Durante este período; Quais foram as diferentes reações das pessoas - apontaram os autores -
em relação a essas possíveis discussões e quais são suas motivações? A captura destes
As inquietações nos fazem compreender os significados trágicos estabelecidos por Vianinha, Chico
Buarque e Paulo Pontes. Isso permite observar o quanto a colocação é
autoritarismo esteve presente na esfera privada dos brasileiros, tanto para aqueles que
desfrutaram ou simplesmente acreditaram nas promessas do "milagre econômico" - indicou
pelo governo como o caminho certo para "progredir" - assim como para aqueles que não
acharam benefícios nesse "milagre" e com certeza que sofreram mais que ela
coerção do dominante.
Em Medeia e Gota D'água de 1972, a forma de Creonte é a representação
força de qualquer maneira. Proprietário da Escola de Samba no Rio de Janeiro
(no caso do teledrama de Vianinha), ou proprietário do conjunto habitacional onde Joana
vida (no caso do texto de Chico Buarque e Paulo Pontes), é o símbolo da riqueza e,
portanto, sob o controle do povo. Portanto, Creonte é quem impõe o certo e o errado.
está errado; o que deve ser feito e o que não deve ser feito. Ele se coloca como representante de
população e lida com o social e seu progresso – um bicheiro. sobre
"protetor" e "amigo" da comunidade carente: ajuda o time de futebol
21 PONTES, Pavlos. Subúrbios e Poesia. Movimento, São Paulo, nº 31, 2 de fevereiro. 1976. In: PIXOTO,
Fernanda. Teatro em pedaços. 2ª edição São Paulo: Hucitec, 1989, p. 283.
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com uniformes e promessas de construir um campo na aldeia; doar seus uniformes escolares
Samba para o carnaval? ordena a instalação de telefones públicos, perdoa aluguéis atrasados e
tarifas.
Por fim, planta-se a ideia de que a comunidade está “sempre em frente”.
no setor social.
No entanto, para alcançar as melhorias que a população em questão deseja,
Creon deixa claro que a ordem deve ser estabelecida. As pessoas devem obedecer a seus próprios
regras, nomeadamente aceitando a expulsão de Medéia/Joana do conjunto habitacional,
como um "enganador" quando ameaçou aqueles que tomaram o poder com ferimentos e morte. Existe
referência a uma das principais características do período da ditadura militar,
a classe acabou se justificando em nome do progresso ao investir em um
combinação de autoritarismo e desenvolvimento econômico. Depois das preocupações de Maria
José de Rezende:
O chamado "milagre econômico" foi destacado como a confirmação do objetivo da ditadura de construir uma nação onde sua suposta democracia triunfasse com responsabilidade. Como elemento importante na busca de legitimidade do regime, o desenvolvimento econômico era constantemente apontado como uma projeção para a hipotética forma de social-democracia na qual o movimento de 1964, segundo seus líderes, teria baseado seus objetivos.22 [--- - -- ------------------------------------------------ - - -----------------------] [Foi necessário] convencer a população a não hesitar em aceitar as regras que foram impostas . Assim, o fim de todos os conflitos, o estabelecimento da cooperação como base para o fortalecimento de instituições como a família, bem como as ideias de harmonia e consenso, passaram a ser apresentadas como a base deste governo numa era de total renascimento da o regime militar 23
Entre os que ficaram satisfeitos com as promessas desse desenvolvimento,
Jason imaginou uma rápida ascensão social, foi apenas isso. Do momento
onde trai Medéia (na peça de Vianinha) e Joana (em Gota D'água) para se casar
a filha de Creonte, ao mesmo tempo trai toda a sua comunidade, abandona e
deixa-a infeliz, aproveita a oportunidade para enriquecer
fácil. Através da influência de Jason, Creon tem um poderoso aliado
manipular esta sociedade a seu favor, já que ele poderia falar dele
22 REZENDE, Maria José de. A ditadura militar no Brasil: repressão e reivindicações de legitimidade (1964-
1984). Londres: UEL Publishers, 2001, s. 115. 23 Ibid., s. 117.
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"igualdade" com o povo da periferia, mas em nome do poder, se
o traidor agora era parte integrante. Nas palavras de Paulo Ponte: “o projeto
Eurípides dá grande ênfase à personagem Medéia [...]. Mas [...] o que há
o jogo é a ambição de Jason de se tornar rei. Isso é o que desencadeia a tragédia interior
[...]. A tragédia, eu diria, das classes baixas.”24
Nas obras brasileiras, Jasão era sambista. No trabalho com Chico Buarque e
Paulo Pontes, foi sambista autor da canção "Gota D'água". Segundo Adélia Bezerra
por Menezes25, esse samba vai simbolizar, correspondendo ao velo de ouro dentro
A Medeia de Eurípides, o maior instrumento de Jasão para alcançar prosperidade e
fortuna. Em ambos os casos, ele não realiza suas façanhas sozinho. Medeia - sim
Tragédia Grega – ajuda-o a capturar a pele de carneiro dourada com sua magia, de
da mesma forma que Joana o ajuda a compor a sua música.
Aproveitar o sucesso desse samba e conhecer seu domínio sobre
meios de comunicação da Vila do Meio-Dia, como rádio e imprensa, Creonte
mostrou interesse em aumentar a reputação de Jason. Nesse sentido, a música folclórica é uma
instrumento de manipulação da indústria cultural buscando sua confiança e valorização
Pessoas. A imagem de beleza, sonho e festa fica clara quando sai no jornal
retratava a cerimônia de casamento da filha de Jasão e Creonte, em toda a sua glória
glamour. Nesse caso, o jornal desperta a curiosidade de toda a população, sim
aqueles que temiam que Joanna soubesse do casamento de seu amante com outro
mulher e disseram que estavam juntos com seu sofrimento, e por isso mesmo apareceram como um
resistência ao controle imposto. Assim se situam os vizinhos da Joana na deles
diálogos na peça Gota D'água:
Estella - Se eu descobrir quem falou aquela safadeza da Joanna... comigo ele estava morto, botei o focinho dele no meio fio, abri a perna dele com uma torção, mergulhei uma vela no focinho e depois botei fogo no chão . pavio
Corina – Tem mais: agora vieram me mostrar o Jason, que andou com a cara no jornal e disse: ele está noivo e vai casar [...]
24 pontes, Paulo. Subúrbios e Poesia. Movimento, São Paulo, nº 31, 2 de fevereiro. 1976. In: PIXOTO,
Fernando. Teater i stykker. 2. udg. São Paulo: Hucitec, 1989, s. 281. 25 MENEZES, Adélia Bezerra de. Magisk design: poesi og politik i Chico Buarque. 2. udg. De er
Paulo: Ateliê Editorial, 2000.
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O papel esgotou assim que saiu... Deviam ter ficado tímidos e nem olhar para a cara de bochechudo estampada naquele tamanho que mandou fogo enquanto ela... não tá certo, coitada.
Maria – Não quero nem ver. E na minha casa esse jornal não entra...
Zaíra – Quero dizer mais: uma amiga da Joana da batata, que botar a mão num desses jornais, quero dar uma cachoeira pra ela, uma gota de paz no olhar...
Nenê – A mulher não tem amigo...
Corina – Trouxe um. Quem quer ver?
Estella- Alô?...
Zaire – Pátria?
Maria-Vis...
Nenê - O que ele diz...
Corinna – (tira um jornal de debaixo da saia) Para quem quiser, pensei que alguém faria.
Vizinhos abrem e questionam furiosamente o jornal [...].26
Discussões sobre manipulação de poder mais profundas de Sandra
Rodart Araújo27 que traça – através dos argumentos de Renato Ortiz em seu
livro A moderna tradição brasileira – cultura brasileira e indústria cultural28 – h
processo de massificação da cultura que enfatiza a necessidade de construir o Estado
uma identidade nacional a favor de seu controle ideológico;
A integração da sociedade torna-se urgente tanto no campo ideológico (para confirmar governos militares) quanto no campo mercadológico (capturar gostos de consumo). A correspondência do estado com as formas de produção artística [...] é cada vez mais frequente. Assim, o campo parece aberto para a implementação da publicidade como forma de difundir novos ideais de consumo e disciplinar a população em novos costumes.29
26 BUARQUE, Chico. & BRIDGES, Paulo. Pingo D'água. 29ª ed. Rio de Janeiro: Cultura Brasileira,
1998, side 38; 39-40. 27 ARAÚJO, Sandra Rodart. Corpo a Corpo i kulturdiskursen i Brasilien i 1970'erne.
História). 77 f. Instituto de História/UFU – Universidade Federal de Uberlândia, 2003. 28 ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira – cultura brasileira e indústria cultural. 5ª ed. Eles são
Paulo: Brasiliense, 2001. 29 ARAÚJO, ό.π. cit., s. 66.
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O controle de Creonte é bastante evidente quando ele sugere
participação de todos os moradores da periferia na festa de casamento da filha, o que lhes dá
serviços, "comida e bebida". Dessa forma, sua opinião
manipulação da harmonia no ato de confraternização e esquecimento – por meio dela
alegria temporária - as dificuldades e a pobreza da vida. como Chico Buarque
ele também aponta na letra de sua música Noite dos mascarados: É carnaval, não
me diga mais quem é você? amanhã tudo volta ao normal, deixa o dia descansar, sai do barco
dirigindo [...].
Hanging - [...] eu quero que você venha para a festa com carinho, prazer e - por que não? - com pagamento atualizado E para garantir o melhor sabor da festa, informo desde já que todas as mulheres devem trabalhar no novo setor que abri: o setor de casamentos dependo de mão de obra local Vamos preparar doces, salgadinhos, bebidas, para encher dois Maracanãs .30
De todos aqueles cuja consciência foi muitas vezes manipulada pela fala
poder de várias formas, os que mais sofreram com o mandato imposto e, portanto,
embora não acreditassem na oração válida, foram os protagonistas de suas tragédias
Vianinha, Chico Buarque e Paulo Pontes. As atitudes radicais de Medeia e Joana
se posicionam como os mais importantes representantes dos problemas e anseios da população, apesar de tudo isso
deles, o que restou foi a causa da opressão e consequente expulsão do local cujos territórios
era de Creonte. Isso fica claro no texto dramático Medeia de 1972,
quando o protagonista desafia os poderosos e suas leis.
Medeia – [...] Que lei é essa que te permite expulsar os outros de suas casas?
Creonte – A Lei da Polícia, se você quiser. Por causa das ameaças que você deixa em todos os lugares. Mas estou aqui de acordo com a minha lei - olho por olho, dente por dente. é a lei do lugar onde muitas pessoas são infelizes.31
As duas tragédias brasileiras se distinguem principalmente pelo desfecho. QUE
O texto dramático Medéia, de Vianinha, foi escrito em 1972, período em que muitos
30 BUARQUE, Chico. & BRIDGES, Paulo. Pingo D'água. 29ª ed. Rio de Janeiro: Cultura Brasileira,
1998, σελ. 147. 31 VIANA FILHO, Oduvaldo. Μήδεια. Vozes da cultura. Petrópolis: Vozes, vol. 93, αρ. 5, 1999, pág. 138.
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representantes do movimento de oposição ao regime militar ainda participaram da luta
armados e sofrendo de opressão. Isso se estabelece no trabalho quando identificamos
Medeia como símbolo do extremismo dessa luta que elimina o controle e a autoridade
autoritário que o estrangula pela "raiz" e consegue assassinar quem o resumiu
domínio: Creonte e sua filha. Mas a coerção forte mostra o medo das pessoas
tempo, como apontou Vianinha nas falas de Dolores, vizinha de Medéia depois
cometimento do crime:
Dolores – Madeia Louca! Corra Medéia, você conseguiu, agora vá, assassino. Vá embora, pobrezinha. Por que chamar a atenção para o nosso sofrimento? Para dobrar nossas asas?32
No entanto, Vianinha consegue situar seu texto dramático em um
das últimas linhas de Medea - antes de seu suicídio - para Aegeus - seu amigo e marido
Dolores –, motiva a resistência democrática, estimula um novo tipo de luta que
foi melhor organizado e não estabelecido por meios revolucionários. Esses
tão abalada na sociedade brasileira, principalmente após a entrada em vigor da lei
institucional nº 5 do exército em 1968. De qualquer forma, Vianinha prega de forma
esperança em tempos "negros" como os do início dos anos 1970.
Medeia - Não aguento mais, Egeia, não aguento. Não suporto tudo o que fiz. Eu fui longe demais. Eu sou humano. – A vingança completa deixa sua vida ainda mais vazia porque os obstáculos ficam em cada esquina... a vingança só é suportável se separados [...] direito de vingança por ter sobrevivido… adeus meu amigo…33
O período de Gota D'água, em 1975, foi uma época em que os intelectuais
não pode acabar com o autoritarismo a curto ou médio prazo. De
Da mesma forma, Joana não consegue matar, na peça, as figuras de autoridade simbolizadas por
de Creonte e sua filha. A resistência democrática foi gradualmente organizada.
Esse novo tipo de oposição é colocado no texto teatral por meio da figura de Egeu, não
apenas conselheiro do vizinho – como Medéia foi na peça de 1972 – mas 32 VIANNA FILHO, Oduvaldo. Medeia. Vozes culturais. Petrópolis: Stemmer, v. 93, nº 5, 1999, p. 153. 33 Ibid., p. 157.
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toda a população da Vila do Meio-Dia, que também atua como seu representante
dificuldades humanas. Aegean é capaz de falar continuamente com seus residentes
conjunto habitacional que tenta convencê-los aos poucos de que é
manipulados e enganados pelo poder e que se uniram apenas contra o autoritarismo – i
defender a inadimplência e a disposição dos aldeões na luta pela
sobrevivência digna – é que suas complexas situações de vida seriam transformadas.
Egeu – [...] Todo mundo trabalha muito para ganhar um salário miserável, contaram, pingaram... Aí aparece um espertinho com um plano meio complicado para confundir o pobre coitado: arrumar uma casa por ninharias [. ... ] dose por dose [...] o trouxa fica encantado... [...] o tempo passa e tem taxas, juros, correção cambial [...] o burro teima e bate a cabeça pra vê se o salário sobe, faz trabalho de pés, come vidro, aperta, estica, sacode, morde a perna, se coça, se mata, mata a mulher, rouba, dá cu, pede esmola e paga taxa obrigatória...34
O vizinho, portanto, não adota uma atitude passiva diante das decisões
de Medéia (texto de Vianinha) que agia como se devesse favores pessoais à amiga por
depois que ele, com o poder de seus orixás, o curou de uma doença que o impedia de trabalhar. De
O Mar Egeu de Eurípides está situado da mesma forma que abriga Medeia em sua terra
porque ela deu a ele com sua magia a possibilidade de ter filhos, um
quando era estéril. Egeu acaba, em Gota D'água, sendo o responsável pelos problemas
coletivo; em Medea em 1972 lidando com a fanfarra e confusão que
protagonista poderia provocar de sua personalidade rebelde.
Aegeus: Não seja tão corajosa, Medea. Não lute contra Creonte. Ele é rei aqui. Para quem sofre muito, muita coragem é muito perigoso.
[...] Medeia – Egeu, eu te ajudei, Egeu...
34 BUARQUE, Chico. & BRIDGES, Paulo. Pingo D'água. 29ª ed. Rio de Janeiro: Cultura Brasileira,
1998, s. 69-70.
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Egeu – Mais do que ajudou, salvou minha vida. [...] Seus passes, seus
reze para que suas ervas me tragam de volta à vida...35
Geralmente nos dois textos dramáticos brasileiros – especialmente em Gota
Água – o que aparece como sujeito é o que Fernando Peixoto chamaria
choque ideológico; fator que não pode ser derivado da Medeia clássica, pois,
muitas vezes a vontade do protagonista encontra a vontade dos deuses.
O desfecho trágico contemporâneo está enraizado na interpretação etnofolclórica que
procura criticar o discurso dominante – definido por Marilena Chauí36 como a visão
verde amarelado da nação e do "povo brasileiro" de onde saíram os valores progressistas
legado populista de Getúlio Vargas. Segundo estimativa de Sandra Siebra
Alencar anbefaler Gota D'água:
Segundo essa visão, o que podemos chamar de conflito simbólico é percebido pelo conflito entre dois discursos concorrentes: o oficial e o dos grupos de oposição ao governo, aqui representados pela classe artística, ambos buscando legitimar sua versão. momento histórico.37
É preciso, sem dúvida, pensar na importância dos créditos na produção
dos sentidos. Os contextos históricos podem nos dizer muitas coisas sobre isso
localização dos criadores de cada obra artística. Além disso, não é possível
referência à tradição trágica e às correspondentes adaptações de Medeia por Eurípides –
como o teledrama de Vianinha e a obra de Chico Buarque e Paulo Ponte - se não
assumimos que as performances são construídas sob a influência de cada um
o tempo será importante para as ideias sobre a tragédia.
35 VIANNA FILHO, Oduvaldo. Medeia. Vozes culturais. Petrópolis: Vozes, v. 93, nº 5, 1999, pp. 140-141. 36 CHAUÍ, Mara. Brasil – mito fundador e sociedade autoritária. 5ª ed. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2004. 37 ALENCAR, Sandra Siebra. Censur mod teatret af Chico Buarque de Hollanda, 1968-1978.
Coleção, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, jul./dez. 2002, página 108.